"Durante o dia, eu trabalhava de pedreiro. Durante a noite, cheguei a tomar conta de 28 pessoas, como monitor." É o relato de Sérgio (nome fictício), um dos homens resgatados em outubro de 2023 da Comunidade Terapêutica (CT) Tenda do Encontro, em Juiz de Fora. Ele descreveu aos auditores fiscais do trabalho uma rotina exaustiva de 12 horas diárias, sem folgas, mesmo tendo transtornos mentais e alucinações decorrentes do uso abusivo de drogas, conforme laudo da Previdência Social.
Sérgio e outros cinco homens com dependência química foram resgatados do local em condições análogas à escravidão, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Em maio deste ano, o juiz Luiz Olympio Brandão Vidal, da 4ª Vara do Trabalho de Juiz de Fora, condenou a entidade e o pastor Vander Campos a pagarem encargos trabalhistas, indenizações morais individuais de R$ 10 mil e uma indenização por danos morais coletivos de R$ 50 mil, revertida ao Fundo de Direitos Difusos. A decisão ainda cabe recurso.
Em outubro de 2024, a CT Tenda do Encontro foi incluída na Lista Suja do Trabalho Escravo, um cadastro do governo federal que responsabiliza empresas e pessoas por submeter trabalhadores a essa prática. A Repórter Brasil tentou contato com o escritório de advocacia que representa a CT e o pastor Campos, mas não obteve retorno até o momento.
Credenciamento e descredenciamento do MDS: Uma contradição
Apesar de estar na Lista Suja desde 2024, a Tenda do Encontro foi credenciada em 25 de junho de 2025 pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) para receber recursos federais destinados ao acolhimento voluntário de pessoas com uso abusivo de drogas, conforme publicado no Diário Oficial da União.
No entanto, em 7 de julho, após ser questionado pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), o MDS decidiu descredenciar a entidade. O Ministério informou à Repórter Brasil que o credenciamento havia sido feito em 2023, antes da publicação da Lista Suja, e que a medida de descredenciamento foi tomada assim que a situação se tornou conhecida.
Condições degradantes e ausência de segurança
As irregularidades trabalhistas na Tenda do Encontro já haviam sido apontadas pela Vigilância Sanitária de Juiz de Fora em julho de 2023. Três meses depois, a inspeção do MTE resultou em 20 autos de infração, que incluíam desde as condições físicas precárias do local até a falta de registro dos trabalhadores e a ausência de medidas de segurança.
Os internos eram obrigados a realizar obras de construção da sede da CT sem equipamentos de proteção individual (EPIs) e usando chinelos. Os alojamentos tinham beliches encardidos e acesso arriscado. Além disso, alimentos como feijão e maionese estavam vencidos, e o preparo era feito em um fogão à lenha com uma panela de pressão avariada, com risco de explosão. Sérgio relatou que, frequentemente, ele ou outros internos usavam seus auxílios governamentais para comprar comida.
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Alimentos consumidos pelos resgatados estavam vencidos, e o preparo era feito em uma panela de pressão avariada, sob risco de explodir. Foto: Reprodução/MTE/via Reporter Brasil |
Ainda, não havia saneamento básico no local. A água para consumo, preparo de alimentos e higiene pessoal vinha de uma mina e era armazenada em uma cisterna sem tampa e sem comprovação de potabilidade. A fiscalização também constatou a ausência de prontuários e de equipe multidisciplinar para o atendimento e supervisão dos internos.
Laborterapia ou exploração? O debate sobre as comunidades terapêuticas
O caso da Tenda do Encontro não é isolado. Comunidades terapêuticas, reconhecidas pelo Estado como espaços de acolhimento, são frequentemente apontadas por violações sistemáticas de direitos humanos. Um levantamento do MNPCT e da UnB, divulgado em março de 2025, revelou a exploração do trabalho dos acolhidos como uma das irregularidades recorrentes.
As CTs justificam a exploração do trabalho dos acolhidos na laborterapia, que utiliza o trabalho como forma de terapia. No entanto, especialistas criticam essa prática, afirmando que ela serve como forma de disciplinar em espaços de exclusão, como hospitais psiquiátricos. "A lógica da laborterapia é o controle dos corpos: cansar o corpo, ocupar a mente do paciente, ocupar todo o tempo do paciente para que ele fique controlado", explica Ana Flávia Dias Tanaka, doutora em psicologia e supervisora do Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional do Estado de São Paulo (Crefito-SP).
Tanaka argumenta que, na prática, a laborterapia em muitas CTs é uma substituição de mão de obra, o que "não é terapêutico". Ela diferencia essa prática da terapia ocupacional, que envolve atividades pensadas de acordo com as necessidades e vontades do paciente, visando sua autonomia e reinserção social, e é uma escolha do paciente. "Se a pessoa tem uma história de trabalho na agricultura, ela pode, sim, participar de uma atividade na horta, de plantio, até de agricultura, mas não com esse viés de cumprimento de horário, de responsabilidade", exemplifica.
No caso da Tenda do Encontro, a justificativa da laborterapia sequer existia. O pastor Vander Ribeiro Campos havia elaborado termos de adesão de trabalho voluntário, assinados por quatro dos seis dependentes químicos resgatados. Os documentos, aos quais a Repórter Brasil teve acesso, não indicavam função nem período, apenas "atividades operativas e lúdicas", expressão que as vítimas não sabiam o que significava. O termo também vinculava o trabalho voluntário à estadia no local.
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Os internos teriam assinado termos de adesão com termos que desconheciam. Foto: Reprodução/ MTE/via Repórter Brasil |
O advogado e professor de direito Rodrigo Goulart Aguiar ressalta que o trabalho voluntário exige condições mínimas de trabalho, saúde e higiene. Ele questiona a voluntariedade de pessoas com dependência química em situação de vulnerabilidade, afirmando que a legislação não permite a troca de força de trabalho por teto e comida. "O que isso significa, na verdade? Que eu mantenho aquela pessoa viva simplesmente para que ela trabalhe para mim. Isso não gera uma condição de dignidade, muito pelo contrário, revela uma exploração", aponta Aguiar.
Orçamento e alternativas para o cuidado
Em 2025, o orçamento do MDS previsto para as comunidades terapêuticas no âmbito do Programa Cuidado e Acolhimento de Usuários Dependentes de Álcool e Outras Drogas é de R$ 169,4 milhões. Especialistas defendem que esses recursos deveriam ser redirecionados a equipamentos do poder público, como a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) do SUS, incluindo os Centros de Atenção Psicossocial (Caps).
"O Ministério [MDS] está privilegiando uma política privada com entidades que, segundo o próprio Estado, apresentam irregularidades não ocasionais ou isoladas, mas sistemáticas", critica Carolina Barros Lemos, perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, que realiza inspeções em instituições de privação de liberdade.
Um estudo do MNPCT e da UnB, divulgado em março deste ano, constatou violações de direitos humanos em todas as 205 comunidades terapêuticas pesquisadas. Condições precárias, submissão a trabalho forçado, privação de liberdade e agressões estão entre os problemas graves encontrados.
A Resolução 29/2011 da Anvisa permite oficinas de trabalho e atividades laborais em comunidades terapêuticas, mas não detalha como devem ser realizadas. "A realidade que a gente encontra nas inspeções, em geral, é de comunidades terapêuticas que não têm funcionários, não têm trabalhadores formalizados, porque toda a operação ali é mantida com o próprio trabalho dos acolhidos", explica Lemos.
"O que na prática acontece é que essas pessoas são submetidas a virar uma mão de obra barata, sem qualquer garantia de direito", complementa o psicólogo Lucio Costa, diretor-executivo do Desinstitute, organização de defesa dos direitos humanos e do cuidado em liberdade no campo da saúde mental.
Fonte: reporterbrasil.org.br